Luzes brilhando sobre o saxofone





Quem me roubou a minha dor antiga,
E só a vida me deixou por dor ?
Quem, entre o incêndio da alma em que o ser periga,
Me deixou só no fogo e no torpor ?

Quem fez a fantasia minha amiga,
Negando o fruto e emurchecendo a flor ?
Ninguém ou o Fado, e a fantasia siga
A seu infiel e irreal sabor...

Quem me dispôs para o que não pudesse ?
Quem me fadou para o que não conheço
Na teia do real que ninguém tece ?

Quem me arrancou ao sonho que me odiava
E me deu só a vida em que me esqueço,
"Onde a minha saudade a cor se trava ?"


Sobre a mesa, ao lado de um monte de papéis que pareciam prontos para ir ao lixo, Natália encontra um poema que parece-lhe talhar o difícil retrato de si mesma que tenta desenhar a muito tempo. Ela que costumava fazer sua alma chegar nos lugares antes de si mesma e a mostrar-se tão por inteiro. Percebia a perplexidade dos outros perante sua própria agudeza. O convívio com música que a fizera entregar sua vida ao instante mais viceral de todos, ao presente.
Acreditava fazer de sua vida uma verdadeira fuga e naquele pedaço de papel poderia esconder-se e, claro, se esconderia. Queria mesmo um refúgio, onde pudesse se livrar de toda a obrigação de ter de ser Natália musicista, mulher, anjo, demônio, prostituta, freira, amante, namorada e as tantas outras adjetivações que usara para descrever a saudade que sentia das luzes dos olhos da infância perdida, onde só a naturalidade das ações eram perceptíveis. Impossível voltar. Olhava as pessoas andando de um lado para outro, cuidando de suas propriedades e interesses. Nada além disso. O mundo era só uma busca de interesses. Será que não haveria motivo que as movesse mais felizes? Viver não poderia bastar?
Instates antes de voltar ao seu ensaio matinal havia recebido um telefonema. A palheta se quebrara duas vezes aquela manhã. Por que tanta raiva? Se perguntava. Achas que ganharás o mundo por ter dúvida e raiva? Achas que tua dor burguesa suplanta a dor do mundo? Suspirou profundamente. Estava cansada de magoar-se. Atenderia o telefone da próxima vez que tocasse...

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Comentários

zildete melo disse…
todos os caminhos nos levam ao centro de nós mesmos; em prosa ou em verso é nossa alma que se despe.
Gostei muito.Geografia do Desejo - histórias sem mapa. Ponto pra você!
beijo, zil
Julliany Mucury disse…
Sempre bão... tudo a seu tempo. Entendeste já? Bjos saudosos!

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